A mitificação do
herói n’ Os Lusíadas
Camões não escolheu um herói
individual, procurou antes que a sua epopeia enunciasse a história de todo um
povo. A intenção e exaltar os portugueses levou o poeta a torná-los verdadeiros
heróis que se foram construindo, ao longo da obra, e que mereceram a mitificação.
Trata-se
de um herói coletivo, que é constituído pelas "armas e barões
assinalados", pelos Reis, por "aqueles que por obras valerosas/Se vão da lei da morte libertando" e
pelos navegadores, que no seu conjunto formam "o peito ilustre
lusitano".
É
apresentado logo na Proposição (Canto I, est. 1-3), quando o
poeta menciona aqueles que se propõe cantar: "(. ..) o peito
ilustre Lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram." A figura
do herói épico nacional caracteriza-se, pois, pelos feitos
grandiosos, nunca antes realizados por humanos, que lhe permite a conquista da
imortalidade. Corresponde à ascensão dos homens à condição divina, como
acontecerá na Ilha dos Amores, e
também à superação dos heróis das epopeias antigas, porque não apresenta um
carácter lendário como acontecera nessas epopeias. Está integrado num fundo
histórico - a História de Portugal - que origina a narração épica. Daí a
afirmação do poeta: “Cesse tudo o que a
musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta”.
No Consílio dos
Deuses no Olimpo (Canto I, est. 19-41), o herói nacional é
enaltecido, sobretudo, através da oposição de Baco. Na realidade, o facto de um
deus temer que a sua glória seja destruída pelos humanos serve
inevitavelmente a construção do herói: "(...) O padre Baco ali não
consentia / (...) conhecendo / Que esquecerão seus feitos no Oriente / Se lá
passar a Lusitana gente". É o receio de Baco (que dirá mais tarde “Temo que deuses venham a ser e nós humanos”)
que engrandece a gente lusa, conferindo-lhe um estatuto que culminará com a
superação da própria condição humana de "bicho da terra tão
pequeno”, frágil e impotente perante as forças cósmicas.
Para que este herói
se fosse construindo, vários elementos foram fundamentais, tais como: a inteligência,
pois os portugueses fizeram grande parte da viagem contrariando a oposição dos
deuses; a coragem e a valentia, que demonstraram perante as ciladas de Baco e
perante o Gigante Adamastor, símbolo do perigo e do inultrapassável.
O discurso
do Adamastor funciona como um
elogio supremo aos nautas lusos, pois, simbolicamente, este representa o Cabo
das Tormentas, que os portugueses conseguiram dobrar, mostrando a vitória dos
humanos sobre a natureza. Até o episódio do Velho do Restelo, anunciando
vários perigos, mortes, tormentas e outros desastres, contribui para a
glorificação desse herói, que supera todos estes obstáculos.
Depois
de todas as etapas vencidas, os portugueses merecem descanso, que decorrerá na Ilha
dos Amores. É o local concebido pelo épico, simbolizando a recompensa pela
heroicidade, a satisfação dos sentidos e a harmonia no Universo. É aqui que os portugueses são mitificados e
se tornam deuses, como se verifica quando as Ninfas se entregam aos
navegadores, que alcançam assim a glória. Sobretudo Vasco da Gama, a quem é
mostrada a “máquina do mundo”, símbolo do conhecimento máximo permitido ao
Homem. Assistimos aqui à realização daquilo que constitui
a essência da epopeia: o poeta torna imortais os feitos do herói nacional,
elevando os nautas, que representam o povo português, à condição de deuses,
pois Vénus "Os Deuses faz descer ao vil terreno / E os humanos subir
ao Céu sereno". Os marinheiros unem-se às deusas amorosas, que os recompensam,
já que "As mãos alvas lhe(s) davam como esposas" e "
Divinos os fizeram, sendo humanos". O poeta explica que esta
ilha "Outra cousa não é que as deleitosas / Honras que a vida
fazem sublimada”. O mito da Ilha dos
Amores surge, então, como algo que, de facto, não existe, mas que funciona
ao nível do inconsciente coletivo, como a realização dos desejos humanos
associados ao ideal de uma recompensa merecida, pois o mérito é real.
Finalmente,
a viagem, mais do que a exploração dos mares, é a passagem do desconhecido para
o conhecido, conseguida pelo esforço e motivada pelo amor, tendo como resultado
a posse do conhecimento. E os heróis são, assim, mitificados.
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