domingo, 12 de fevereiro de 2017

Mitificação do herói n' "Os Lusíadas"

A mitificação do herói n’ Os Lusíadas


Camões não escolheu um herói individual, procurou antes que a sua epopeia enunciasse a história de todo um povo. A intenção e exaltar os portugueses levou o poeta a torná-los verdadeiros heróis que se foram construindo, ao longo da obra, e que mereceram a mitificação.
 Trata-se de um herói coletivo, que é constituído pelas "armas e barões assinalados", pelos Reis, por "aqueles que por obras valerosas/Se vão da lei da morte libertando" e pelos navegadores, que no seu conjunto formam "o peito ilustre lusitano".
É apresentado logo na Proposição (Canto I, est. 1-3), quando o poeta menciona aqueles que se propõe cantar: "(. ..) o peito ilustre Lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram." A figura do herói épico nacional caracteriza-se, pois, pelos feitos grandiosos, nunca antes realizados por humanos, que lhe permite a conquista da imortalidade. Corresponde à ascensão dos homens à condição divina, como acontecerá na Ilha dos Amores, e também à superação dos heróis das epopeias antigas, porque não apresenta um carácter lendário como acontecera nessas epopeias. Está integrado num fundo histórico - a História de Portugal - que origina a narração épica. Daí a afirmação do poeta: “Cesse tudo o que a musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta”. 
No Consílio dos Deuses no Olimpo (Canto I, est. 19-41), o herói nacional é enaltecido, sobretudo, através da oposição de Baco. Na realidade, o facto de um deus temer que a sua glória seja destruída pelos humanos serve inevitavelmente a construção do herói: "(...) O padre Baco ali não consentia / (...) conhecendo / Que esquecerão seus feitos no Oriente / Se lá passar a Lusitana gente". É o receio de Baco (que dirá mais tarde “Temo que deuses venham a ser e nós humanos”) que engrandece a gente lusa, conferindo-lhe um estatuto que culminará com a superação da própria condição humana de "bicho da terra tão pequeno”, frágil e impotente perante as forças cósmicas. 
 Para que este herói se fosse construindo, vários elementos foram fundamentais, tais como: a inteligência, pois os portugueses fizeram grande parte da viagem contrariando a oposição dos deuses; a coragem e a valentia, que demonstraram perante as ciladas de Baco e perante o Gigante Adamastor, símbolo do perigo e do inultrapassável. O discurso do Adamastor funciona como um elogio supremo aos nautas lusos, pois, simbolicamente, este representa o Cabo das Tormentas, que os portugueses conseguiram dobrar, mostrando a vitória dos humanos sobre a natureza. Até o episódio do Velho do Restelo, anunciando vários perigos, mortes, tormentas e outros desastres, contribui para a glorificação desse herói, que supera todos estes obstáculos.

 Depois de todas as etapas vencidas, os portugueses merecem descanso, que decorrerá na Ilha dos Amores. É o local concebido pelo épico, simbolizando a recompensa pela heroicidade, a satisfação dos sentidos e a harmonia no Universo. É aqui que os portugueses são mitificados e se tornam deuses, como se verifica quando as Ninfas se entregam aos navegadores, que alcançam assim a glória. Sobretudo Vasco da Gama, a quem é mostrada a “máquina do mundo”, símbolo do conhecimento máximo permitido ao Homem. Assistimos aqui à realização daquilo que constitui a essência da epopeia: o poeta torna imortais os feitos do herói nacional, elevando os nautas, que representam o povo português, à condição de deuses, pois Vénus "Os Deuses faz descer ao vil terreno / E os humanos subir ao Céu sereno". Os marinheiros unem-se às deusas amorosas, que os recompensam, já que "As mãos alvas lhe(s) davam como esposas" e " Divinos os fizeram, sendo humanos". O poeta explica que esta ilha "Outra cousa não é que as deleitosas / Honras que a vida fazem sublimada”. O mito da Ilha dos Amores surge, então, como algo que, de facto, não existe, mas que funciona ao nível do inconsciente coletivo, como a realização dos desejos humanos associados ao ideal de uma recompensa merecida, pois o mérito é real. 

 Finalmente, a viagem, mais do que a exploração dos mares, é a passagem do desconhecido para o conhecido, conseguida pelo esforço e motivada pelo amor, tendo como resultado a posse do conhecimento. E os heróis são, assim, mitificados.

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