sexta-feira, 3 de março de 2017

Poemas a gosto




Poesia do século XX – seleção de poemas representativos







As palavras

   São como um cristal,
   as palavras.
   Algumas, um punhal,
   um incêndio.
   Outras,
   orvalho apenas.

   Secretas vêm, cheias de memória.
   Inseguras navegam:
   barcos ou beijos, as águas estremecem.

  Desamparadas, inocentes, leves.
  Tecidas são de luz
  e são a noite.
  E mesmo pálidas
  verdes paraísos lembram ainda.

  Quem as escuta? Quem
  as recolhe, assim,
  cruéis, desfeitas,
  nas suas conchas puras?
                     Eugénio de Andrade



   Há Palavras que Nos Beijam


   Há palavras que nos beijam 
   Como se tivessem boca. 
   Palavras de amor, de esperança, 
   De imenso amor, de esperança louca. 

   Palavras nuas que beijas 
   Quando a noite perde o rosto; 
   Palavras que se recusam 
   Aos muros do teu desgosto. 

   De repente coloridas 
   Entre palavras sem cor, 
   Esperadas inesperadas 
   Como a poesia ou o amor. 

   (O nome de quem se ama 
   Letra a letra revelado 
   No mármore distraído 
   No papel abandonado) 

   Palavras que nos transportam 
   Aonde a noite é mais forte, 
   Ao silêncio dos amantes 
   Abraçados contra a morte. 
       Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca

      
           Orfeu Rebelde
    Orfeu rebelde, canto como sou:
    Canto como um possesso
    Que na casca do tempo, a canivete,
    Gravasse a fúria de cada momento;
    Canto, a ver se o meu canto compromete
    A eternidade do meu sofrimento.

    Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
    Eu ergo a voz assim, num desafio:
    Que o céu e a terra, pedras conjugadas
    Do moinho cruel que me tritura,
    Saibam que há gritos como há nortadas,
    Violências famintas de ternura.

    Bicho instintivo que adivinha a morte
    No corpo dum poeta que a recusa,
    Canto como quem usa
    Os versos em legítima defesa.
    Canto, sem perguntar à Musa
    Se o canto é de terror ou de beleza.
                                                Miguel Torga

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

                       Sophia de Mello Breyner Andresen



São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!
   
                  

         
                       Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

                  Miguel Torga, Antologia Poética

 

     Poema à Mãe


    No mais fundo de ti, 
    eu sei que traí, mãe 

    Tudo porque já não sou 
    o retrato adormecido 
    no fundo dos teus olhos. 

    Tudo porque tu ignoras 
    que há leitos onde o frio não se demora 
    e noites rumorosas de águas matinais. 

    Por isso, às vezes, as palavras que te digo 
    são duras, mãe, 
    e o nosso amor é infeliz. 

    Tudo porque perdi as rosas brancas 
    que apertava junto ao coração 
    no retrato da moldura. 

    Se soubesses como ainda amo as rosas, 
    talvez não enchesses as horas de pesadelos. 

    Mas tu esqueceste muita coisa; 
    esqueceste que as minhas pernas cresceram, 
    que todo o meu corpo cresceu, 
    e até o meu coração 
    ficou enorme, mãe! 

    Olha — queres ouvir-me? — 
    às vezes ainda sou o menino 
    que adormeceu nos teus olhos; 

    ainda aperto contra o coração 
    rosas tão brancas 
    como as que tens na moldura; 

    ainda oiço a tua voz: 
          Era uma vez uma princesa 
          no meio de um laranjal...
 

    Mas — tu sabes — a noite é enorme, 
    e todo o meu corpo cresceu. 
    Eu saí da moldura, 
    dei às aves os meus olhos a beber, 

    Não me esqueci de nada, mãe. 
    Guardo a tua voz dentro de mim. 
    E deixo-te as rosas. 

    Boa noite. Eu vou com as aves. 

         Eugénio de Andrade, Os Amantes Sem            Dinheiro



  Para Atravessar Contigo o  Deserto do Mundo


    Para atravessar contigo o deserto do mundo 
    Para enfrentarmos juntos o terror da morte 
    Para ver a verdade para perder o medo 
    Ao lado dos teus passos caminhei 

    Por ti deixei meu reino meu segredo 
    Minha rápida noite meu silêncio 
    Minha pérola redonda e seu oriente 
    Meu espelho minha vida minha imagem 
    E abandonei os jardins do paraíso 

    Cá fora à luz sem véu do dia duro 
    Sem os espelhos vi que estava nua 
    E ao descampado se chamava tempo 

    Por isso com teus gestos me vestiste 
    E aprendi a viver em pleno vento 

  Sophia de Mello Breyner Andresen,   Livro Sexto

 

Gaivota

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

                                         Alexandre O’ Neill


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