terça-feira, 18 de abril de 2017

Símbolos no Memorial do Convento - A. Teixeira

Aspetos simbólicos no Memorial do Convento, de José Saramago O romance Memorial do Convento, de José Saramago, apresenta um riquíssimo manancial de aspetos simbólicos a explorar. Apresentam-se aqui apenas os mais significativos, numa análise breve e despretensiosa. A História de Manuel Milho A história, que Manuel Milho vai contando, durante os vários dias que dura o transporte da pedra Benedictione (episódio designado como “A epopeia da pedra”), é uma reflexão sobre a existência humana e mostra que, no fundo, o mais importante é o ser humano e a sua essência. Manuel Milho narra a história de uma rainha que gostaria de ser mulher para conseguir decidir se, na verdade, queria ser ou não rainha, e de um ermitão que queria ser homem. Ambos desejavam não ser o que eram, mas ser apenas um homem e uma mulher. Esta história mostra que cada um é aquilo que as condições sociais e as circunstâncias permitem que o seja (capítulo XIX). Três Representa a ordem espiritual e intelectual. É o número perfeito, a expressão da totalidade. Para o Cristianismo, os três elementos da trindade são o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só Deus em três pessoas, tal como Baltasar, Blimunda e Bartolomeu Lourenço que constituem a “Trindade Terrestre” (como lhes chama o músico Scarlatti), três pessoas em perfeita comunhão que alcançam um poder divino e uno. Quatro Número ligado ao quadrado e à cruz, significa o sólido, a totalidade, mas uma totalidade perecível. Curiosamente, Domenico Scarlatti será o quarto elemento de um conjunto de pessoas que concretizam a audaciosa missão de voar. Ele parece ser o elemento que completa esse todo, elemento esse, imprescindível à plena realização desse projeto. No entanto, esse sonho, irá desfazer-se, será findável. Nove Representa a gestação, a renovação e o nascimento. Blimunda procura Baltasar por nove anos, a sua separação originou a fragmentação da unidade representada pelo par. Número da procura, da gestação, simboliza o coroar do esforço, o fim de um ato criativo, o fim de um período de busca frutuosa, como acontece com Blimunda que, durante nove anos, procurou o seu amado. Após a separação, Blimunda reencontra Baltasar e, recolhendo a sua vontade, une-se àquele que ama. Esta união representa a vitória do poder do amor. Sete Muito referido na Bíblia, surge recorrentemente na obra, sete são os homens que vêm trabalhar para Mafra no convento e contam em outras tantas micronarrativas as suas vidas particulares, sendo oriundos de sete regiões do país; sete bispos batizam a infanta; sete vezes Blimunda vai a Lisboa à procura de Baltasar e o número sete repete-se na data da bênção da primeira pedra do convento – 17 de novembro de 1771. O sete é o resultado do número perfeito, o três e, do número da totalidade, o quatro e, representa a totalidade do espaço e do tempo, do universo em movimento. Aparece também associado ao apelido de Baltasar, Sete-Sóis, e a Blimunda, Sete Luas, como lhe chama o padre Bartolomeu. Assim, associado a Baltasar Sete-Sóis e ao povo, sugere a ideia de vida, de renovação de energias (o povo trabalha até à exaustão no convento, Baltasar constrói uma máquina, mesmo depois de decepado). Como o Sol, que todos os dias tem de vencer os guardiães da noite (mitologia antiga), também Baltasar vence as forças obscuras da ignorância e da intolerância ao voar. Sete-Sóis e Sete-Luas Blimunda - Com o seu poder de visão, compreende as coisas sobre a vida, a morte, o pecado e o amor. O olhar de Blimunda é o olhar da «História» que o narrador exercita, denunciando a moral duvidosa, os excessos da corte, o materialismo e hipocrisia do clero, as injustiças da Inquisição, o terror, o obscurantismo de uma época, a miséria e as diferenças sociais. Baltasar – apesar da sua deformidade física (perda da mão esquerda representa o corte com o passado militar) representa a força do trabalho do homem do povo: é o verdadeiro herói. Os nomes de Baltasar e de Blimunda têm o mesmo número de letras, começam por B e as alcunhas deles são uma forma de mostrar a sua complementaridade. Baltasar está relacionado com o Sol, fonte de luz, de calor e de vida, enquanto Blimunda surge relacionada com a lua, símbolo da dependência, da periodicidade e da renovação. A lua marca o ritmo biológico da mulher e o seu poder está, na verdade, dependente das fases da lua. A vida dela necessita da presença de Baltasar, mas o contrário também é verdadeiro, o que dá uma nova perspetiva a esta correlação. Os dois formam um só ser, como se as particularidades/defeitos de um fossem colmatadas pelo outro. Estas alcunhas aparecem associadas ao número sete que representa perfeição que, no caso, apenas se atinge em conjunto. Eles são perfeitos porque se amam e se entregam sem reservas a esse amor. Mutilação de Baltasar Aparece frequentemente como uma marca de inaptidão e de marginalidade. Todavia, na obra, Baltasar conseguirá superar a sua incapacidade ao contribuir para construir a passarola e o convento, tal como Deus que, sem mão esquerda, também fez o universo, como explicou o padre Bartolomeu a Baltasar. A “Passarola voadora” Traduz a harmonia entre o sonho e a sua realização. Graças ao sonho, foi possível juntar a ciência, o trabalho artesanal, a magia e a arte, para fazer a passarola voar. Representa a liberdade, a alternativa a um espaço de repressão, intolerância e violência (Inquisição / Despotismo Iluminado). Funciona como o elo de ligação entre a terra e o céu, e surge, na obra, metaforicamente, referida como uma ave, o que remete, de imediato, para o voo das aves. O sonho de voar conota a ousadia e a conquista, mas pode ter um lado negativo: a queda, a desilusão, o castigo, com a tragédia a que são sujeitos todos os envolvidos: o padre Bartolomeu, que “morreu doido”, de tanto fugir da Inquisição; Baltasar, queimado na fogueira de um auto de fé; Blimunda, a peregrinar nove anos em busca de Baltasar e Scarlatti, que teve de destruir o seu cravo, par não se ver perseguido pela Santo Ofício. Assim, a “hybris” dos quatro foi punida com o “pathos” e a catástrofe que atingiu todo o grupo. O ovo A máquina inventada pelo padre Bartolomeu aparece também designada por ovo, elemento que simboliza a origem, o nascimento. Como que protegido de qualquer ameaça, o casal vive no seu interior momentos de amor intenso. O ovo pode ser interpretado simultaneamente como um espaço de segurança e como a renovação constante do amor. O Convento D. João V, que surge na obra como um monarca libertino e vulgar (contrariando a História, que o consagra como «o Magnânimo»). Manda construir um monumento que é símbolo da ostentação régia, da opressão e da vaidade dos poderosos. Representa também o sacrifício dos operários que construíram esse monumento, a exploração e miséria do povo que nele trabalhou. Símbolo do definitivo, do imutável, do eterno e, nesse sentido, opõe-se à passarola. É evidente o contraste entre o caráter libertador do projeto de Bartolomeu de Gusmão, que evidencia a atitude criadora do homem e a capacidade de vencer barreiras quando trabalha em conjunto, e a natureza opressora da promessa do rei, que espelha uma vontade egoísta e megalómana. Os olhos/O olhar Ocupam um espaço privilegiado devido ao poder visionário de Blimunda. O seu olhar mágico seduz Baltasar e será muitas vezes uma forma de comunicação entre o casal. Espigão O espigão de Baltasar de que Blimunda se serve para se defender, no Monte Junto, da tentativa de violação por um frade dominicano, presentifica o próprio Baltasar. É, como se, na sua ausência, tivesse ficado para salvar Blimunda a “mão” do seu amor. Sonho É o espaço onde as personagens deixam transparecer as suas emoções, medos, frustrações, desejos. Funciona, por vezes, como um fator de equilíbrio, como é o caso da rainha, que compensa, no mundo onírico, ao sonhar eroticamente com o cunhado D. Francisco, as suas frustrações afetivas e sexuais. Em relação ao rei, os sonhos espelham, acima de tudo, a manifestação do seu poder. Os sonhos comuns de Baltasar, Blimunda e Bartolomeu são uma forma de sublinhar a sua cumplicidade e partilha: Baltasar sonha com a guerra, com a agricultura e com o voo. Música Simboliza a harmonia e a plenitude do cosmos. A música de Scarlatti representa a comunicação e tem o poder de curar. O som do seu cravo irá fascinar o padre e acompanhar o processo de construção da passarola e o momento em que ela se eleva no céu. Pedra/A mãe pedra Símbolo da Terra-Mãe, exige um esforço enorme por parte dos trabalhadores que, com coragem, força, habilidade e inteligência e vão transportar de Pero-Pinheiro até Mafra. É uma laje descomunal que evidencia a pequenez do homem, mas que comparativamente ao convento se torna pequena. Conseguir transportar a pedra até ao seu destino vai transformar estes homens em verdadeiros heróis de uma “epopeia em terra”. A pedra, pela sua firmeza, também se pode associar à sabedoria. Abegoaria É o espaço escondido onde se constrói a passarola, onde se materializa o sonho. É o espaço da utopia, da invenção, da descoberta, da partilha e da amizade. Sangue Símbolo de vida, mas também da aliança perene entre Blimunda e Baltasar, assinalada na cruz desenhada por ela no peito dele depois do primeiro encontro amoroso. Montanha (Monte Junto) Estabelece a relação da terra com o céu, centro do mundo, traduz a estabilidade e a inalterabilidade, guardando o que nela permanece, como a passarola que cai no Monte Junto. A máquina voadora ficou protegida dos homens e do Santo Ofício e, assim, mais tarde, inusitadamente e, como por magia, levantou voo, dando sentido à vida da trindade terrestre. Fogo É conforto, aconchego, purificação e regeneração, mas também destruição. O fogo da lareira, em casa de Blimunda, é proteção e bem-estar; o fogo que Bartolomeu Lourenço lança à sua máquina é uma forma de destruir o seu sonho fracassado; o da fogueira dos autos de fé é opressão, destruição e morte. Sol Associado a Baltasar Sete-Sóis e ao povo, sugere a ideia de vida, de renovação de energias (o povo trabalha até à exaustão no convento, Baltasar constrói uma máquina, mesmo depois de decepado). Como o Sol, que todos os dias tem de vencer os guardiães da noite (mitologia antiga), também Baltasar vence as forças obscuras da ignorância e da intolerância ao voar. Lua Símbolo do ritmo biológico da Terra, a lua traduz a força vital que é representada pelas vontades recolhidas por Blimunda para fazer voar a passarola. Associada a Blimunda, a que o padre associa o apelido de Sete-Luas, lembra o seu mágico poder de «ver às escuras», embora este esteja condicionado (só vê o interior das pessoas em jejum e quando não há quarto de lua). Cobertor Trazido da Holanda pela rainha, torna-se símbolo da separação que marca o casamento de conveniência do casal régio. Exprime a frieza do amor, a ausência do prazer, os desejos insatisfeitos. Colher Quando partilhada, é um símbolo da aliança, do compromisso sagrado que vai unir para sempre as duas personagens populares. Exprime o amor autêntico, a atração erótica e apaixonada, a vivência plena do prazer. A.Teixeira, abril de 2017

Sem comentários:

Enviar um comentário